Anteprojeto de lei autoral uma reflexão
O anteprojeto de lei autoral posto em consulta pública pelo Ministério da Cultura propõe mudanças conceituais ao que a nação brasileira sempre entendeu como os direitos de autor e os que lhes são conexos. Pela primeira vez em nosso país um projeto de lei que trata de direitos autorais os submete às regras da livre iniciativa, defesa da concorrência e defesa do consumidor, com o objetivo de harmonizar "os interesses dos titulares e os da sociedade". Os direitos dos criadores intelectuais passaram a ser meros interesses.
Os autores viraram simples produtores de conteúdo. Como consequência imediata dessa mudança conceitual, o mais alarmante do anteprojeto é a significativa majoração das possibilidades de uso de obras criativas, sem a autorização de seus autores e, ainda, mas não menos lesivo, o fato de que os criadores perderam o direito de autorizar ou proibir modificações de suas obras por terceiros, sob a frágil alegação de que poderiam ser feitas como mero "recurso criativo". Nessa mesma linha de raciocínio, o anteprojeto permite a cópia integral da obra intelectual, sem prever a compensação existente em várias leis autorais estrangeiras, chamada de "cópia privada". Também possibilita que as notícias diárias e informativas veiculadas pela imprensa possam ser livremente utilizadas por outros veículos, sites e blogs, sem a licença de seus criadores, fato que vem fazendo fechar empresas jornalísticas em todo o mundo.
Invadindo ainda mais o direito de os autores decidirem livremente sobre o uso de suas criações, o anteprojeto cria a licença não voluntária conferindo ao presidente da República o poder (supremo) de autorizar em nome dos autores o uso de suas obras artísticas, literárias e científicas, em determinadas situações, dentre elas quando "os titulares de forma não razoável recusarem ou criarem obstáculos à exploração da obra, ou ainda exercerem de forma abusiva os direitos sobre ela". Seguindo o processo expropriatório, o poder público, no lugar dos autores, determinará o valor dos direitos autorais a serem pagos nessa situação. E pasmem! Pela primeira vez na história da legislação autoral brasileira são previstas penalidades (crime contra a ordem econômica) para os autores, caso eles ou seus mandatários, de "forma injustificada" não autorizem o uso de suas criações.
Enquanto os criadores sofrem punições, o anteprojeto não cria qualquer penalidade para as empresas de radiodifusão violadoras de direitos e inadimplentes, disciplinando apenas, em artigo mal redigido, uma manifestação do Ministério da Cultura no processo de renovação da concessão. Não se sabe que manifestação será essa. O anteprojeto é crivado de autoritarismo. Demonstração cristalina disso ocorre quando obriga os titulares de direitos sobre obras audiovisuais a criarem associação para gestão coletiva.
Obriga também os titulares de direitos sobre músicas e obras audiovisuais a cobrarem juntos pelos seus direitos, quando se tratar de execução e exibição pública. Será que eles querem? Além de inequívoco dirigismo e intervencionismo, a nova sistemática proposta ameaça a arrecadação dos segmentos de televisão, cinema e TV por assinatura, e poderá causar muitos prejuízos aos compositores e artistas que recebem hoje do Ecad e das associações pela execução de suas canções por essas empresas. O anteprojeto ameaça também de forma direta os gestores das associações, impondolhes punições que não se aplicam nem aos dirigentes de bancos.
A ditadura militar não teve essa coragem! Mais ainda. No afã de controlar e intervir na gestão de caráter privado das associações de direito autoral, o Ministério da Cultura chama para si o poder de outorgar registro e autorização de funcionamento às entidades de gestão, cobrando delas uma série de procedimentos administrativos hoje já praticados e fiscalizados diretamente por seus associados, únicos e legítimos interessados do bom funcionamento de suas entidades. Tudo isso fere de morte o inciso XVIII, artigo 5º, cláusula pétrea de nossa Constituição federal, que disciplina "a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas (que) independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento".
Mas, mesmo assim, o Ministério da Cultura espera que seu anteprojeto prospere e se vale de bodes expiatórios para ludibriar os artistas e dizer que lhes trará inúmeras vantagens. Como consequência de todas essas aberrações, o anteprojeto prevê um sensível abrandamento das sanções civis impostas aos que violam direito autoral. Mas o que estará por trás disso tudo? O acesso livre que socializa o bem de terceiro; a possibilidade dos googles da vida se fartarem de tanto "conteúdo" e não remunerarem os criadores; o fortalecimento da máquina estatal em detrimento do direito universal de autogestão da iniciativa privada. É isso que o Ministério da Cultura está submetendo à consulta pública.